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sábado, 3 de março de 2018

O caso de Rodolpho Branco


No primeiro semestre de um curso universitário de Humanas, pode-se encontrar basicamente quatro tipos de calouros: 1) aquele que ali está porque anteriormente teve sua mente moldada de acordo com os ditames da ideologia esquerdista dominante, sendo que a universidade é apenas um prolongamento do que ele já julga conhecer [de todos os tipos, esse é o que tem mais chance de completar o curso, ainda que muitas vezes demore anos a fio para tanto, levando-o aos trancos e barrancos, sem compromissos com estudos na acepção do termo e exercendo dentro do campus uma militância política truculenta e de cunho intelectual altamente imbecilizado]; 2) aquele que não sabe ao certo porque escolheu estar ali, se mostrando perdido, deslocado e sem nenhum rumo [de forma mais geral, o aluno que se enquadra nessa classificação desiste do curso antes mesmo de terminar o segundo semestre]; 3) aquele que ingressa no curso em busca de conhecimento e da formação de uma visão de mundo profunda, de um propósito de realização intelectual baseada na construção de ideias a partir da interlocução com uma ampla diversidade de autores, inclusive e sobretudo com os que não são alinhados aos cânones acadêmicos, tais quais Marx, marxistas e derivações, como a Escola de Frankfurt [este grupo compõe uma minoria silenciosa e confidencial com boas chances de concluir a graduação, mas é obrigado a travar uma luta interna quase que diária contra o próprio ambiente universitário que, se não estiver respaldada em grande força espiritual, logo faz o esforço soçobrar e 4) aquele que faz o curso com objetivos estritamente pragmáticos, ou seja, se formar para possuir um diploma de nível superior, um tipo bastante raro nas Humanas, mas ainda assim verificável.
Rodolpho Branco, rapaz de seus 17 ou 18 anos, silhueta rotunda e atarracada, compunha um perfil curioso que não se enquadrava totalmente em nenhuma das quatro categorias acima listadas. Talvez o segundo tipo fosse o mais próximo de sua figura pessoal, mas embora perdido em grande medida, ele mantinha algum grau de politização típico do primeiro tipo, contudo, lhe faltavam o engajamento e a disposição para a ação direta que caracterizam o militante de esquerda, além disso, ele também não fazia a menor questão de propagar cotidianamente o beabá daquela turma, sendo que não possuía nem sequer o parco repertório da marxologia. Branco era um largado que, vez por outra, soltava despreocupadamente algum clichê esquerdista, sem nenhum objetivo político, sem nenhum compromisso estratégico. Para se ter ideia, já em termos de visual, um elemento importante na composição do estereótipo do militante esquerdista, Branco desviava totalmente do padrão com seu boné, bermudão largo, comprido e tênis de skatista. Evidentemente, em seu íntimo, ele não gostava nem um pouco dos Estados Unidos, mas de maneira contraditória, assim como todos que renegam a cultura ocidental, a democracia verdadeira e a defesa incondicional da liberdade, seus atos e costumes entravam em choque com as ideias, todas elas deformadas e bizarras.
Nas rodinhas de conversa Branco rapidamente revelava aos convivas suas ridículas idiossincrasias, próprias de um espírito dos mais pobres. Certa vez ele contou com orgulho que havia causado vômito - descrevendo até mesmo os detalhes do mesmo - no irmão pequeno de uma namorada após lhe fazer cócegas incessantes. Em outra ocasião, discutindo a respeito de música, afirmou que Ronnie James Dio era desprezível porque não evoluía, que Rock Progressivo era um estilo burguês (outro exemplo dos clichês de esquerda que ele escutava e reproduzia sem realizar análise e julgamento próprios) e também que qualquer barulho poderia ser considerado musicalmente válido. Ora, se qualquer barulho é música, então como ele poderia proferir desqualificações a artistas e estilos musicalmente bem mais elaborados do que barulho, apenas pelo fato de não apreciá-los?! Para Branco, certamente, o barulho do irmão da namorada vomitando era mais interessante que música de qualidade.
Em um dos últimos episódios dos quais me recordo de Branco destilando sua sapiência, discutia-se sobre a ditadura militar no Brasil e ele, obviamente precisava dar a demonstração de conhecer alguma coisa em relação ao assunto  (todo indivíduo que entra em um curso de Humanas, mesmo que não esteja preocupado em manter qualquer compromisso amplo e de prazo que vá além dos quatro anos regulares, se sente na necessidade de articular algum palavrório acerca de questões que perfazem o arcabouço básico do metiê): lá pelas tantas, declarou: "era uma época em que minha mãe comia arroz com limão!" Se a mãe de Branco era pobre à época da ditadura, teria ela se recuperado economicamente na década de 1980, período de hiperinflação? Deveras improvável. Talvez um pouco mais para frente, quando da estabilização monetária dos 1990. Mais crível. Em algum momento a família de Branco, ou quem quer que fosse que lhe oferecia respaldo financeiro, venceu a penúria da fase dos milicos, só assim para ele usar tênis Vans... Bem que ele poderia ter criticado a ditadura em seu aspecto político, ou melhor ainda, se falasse do sucateamento do Banco Central, um dos fatores geradores da hiperinflação, que aí sim fez muita gente comer arroz com limão depois que o governo havia se tornado novamente civil, mas isso já seria exigir muito da capacidade de nosso estranho rapaz.
A aula de Teoria da História I realizava-se aos sábados pela manhã, uma inesperada e involuntária forma de selecionar pessoas em se tratando de um ambiente esquerdista. Qualquer um que não levasse aqueles momentos de acordo com a mais pura seriedade, com o mais profundo interesse e com o mais esmerado esforço não poderia chegar a lugar nenhum em termos de conhecimento e formação como historiador. Ali, desde as primeiras palavras enunciadas por aquela professora, criatura que apareceu como uma espécie de Providência para quem estivesse interessado em enfrentar os desafios que ela propunha sem precisar torná-los abertamente manifestos e só os revelando tacitamente, confidencialmente, nas recônditas entrelinhas, ficava estabelecido às mentes virtuosas que um caminho estreito e difícil estava se abrindo, um caminho que deveria obrigatoriamente ser precorrido caso os presentes quisessem buscar algo a mais. Em um desses sábados olhei para Branco e o vi desenhando absorto nas últimas páginas do caderno, língua dobrada no canto da boca, como quem se dedica a uma tarefa, lápis e borracha nas mãos para traçar e dar acabamento a um tipo de grafite desses que se observa em muros públicos... O mundo caía ao seu lado, e ele ali, se divertindo, como se não houvesse nada além do seu desenho.
Branco não durou dois semestres na faculdade, nunca mais o vi, nunca mais soube nada dele. A pequena parte de sua história aqui narrada está longe de ser um caso de horror à moda de Charles Dexter Ward, mas não deixa de ser um caso bizarro e, a seu modo, perturbadoramente assustador.